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O uso do território torna-se sempre um simulacro,
um símbolo comportamental e da cultura que o sustenta...
Gianni Pettena, From the revisited desert to the invisible city
O México, uma cultura que hoje paira no nada.
Heriberto Yépez, Psicohistoria mexicana

Cinzenta e chã, assente na fronteira entre o México e os Estados Unidos, numa faixa norte do deserto de Chihuahua, Ciudad Juárez é aquilo a que os mexicanos chamam uma cuidad de paso, o equivalente urbano a um motel pago à hora. Ao longo de grande parte da sua história, Juárez foi considerada uma paragem temporária, ao invés de um lugar para ficar permanentemente, um trampolim para os migrantes a caminho de el otro lado. Juárez é uma cidade construída com restos, por pessoas a caminho de outro lugar. Nos tempos do domínio colonial espanhol, nos primeiros anos do século xix, Juárez servia como ponto de partida para expedições militares e comerciais com destino ao Norte. (Foi assim que obteve o seu nome original, El Paso del Norte – “o caminho para o Norte”.) O carácter transitório de Juárez tornou-se ainda mais distinto após a divisão do povoado em duas cidades, na sequência da guerra entre o México e os Estados Unidos, em 1848, e tornou-se um dos principais postos avançados na fronteira recém traçada. Para o melhor e para o pior, a cidade estava destinada a ser um nó tenso e dinâmico entre dois países com disparidades culturais e económicas brutais.
     As características mais proeminentes da Ciudad Juárez contemporânea são a precariedade económica permanente, as injustiças sociais gritantes, os perigos ambientais latentes e as ondas de violência recorrentes. A jornalista e antiga bailarina Alma Guillermoprieto descreve Juárez como “uma cidade desordenada, sem graça... Há auto-estradas, áreas de restaurantes de fast-food, centros comerciais monótonos, alguns parques e, por todo o lado, os yonkes – sucatas – onde as montanhas de carros destruídos, empilhados dos dois lados da estrada, são tão altas que dir-se-ia estarmos a atravessar um desfiladeiro. No Inverno, as barracas de contraplacado e plástico ondulado dos arredores não protegem do gelo. No Verão, o calor derrete o asfalto... A natureza desenraizada de Juárez é como um fungo na atmosfera1. De facto, Juárez é um borrão na paisagem, uma realidade material, mas também um fenómeno urbano intangível que as pessoas que estudam a cidade, ou nela habitam, muitas vezes confundem com a normalidade.
     Muito do carácter “desenraizado”, instável, da vida em Juárez é atribuído ao facto de se tratar de uma cidade de migrantes, uma passagem urbana; directamente ou não, a migração desempenhou sempre um papel importante no crescimento desordenado da cidade. No entanto, contrariamente à noção popular, Juárez segue um esquema coerente em termos de desenvolvimento arquitectónico e urbano. A ilusão de uma “cidade construída sem arquitectos” – de que Tijuana se orgulha, e é tida como um dado adquirido em vários estudos sobre a fronteira e em círculos da intelligentsia local – promove a ideia de que condições primordiais como a informalidade, a escassez e o desenvolvimento desfigurado impediram que qualquer forma de cultura arquitectónica se desenvolvesse em lugares como Ciudad Juárez. Mas o grande mito da informalidade é ilusório.
     Mesmo uma leitura rápida e superficial da paisagem construída de Ciudad Juárez sugere que ali estão em jogo lógicas arquitectónicas e urbanas complexas. Os académicos costumam centrar-se nas “componentes primárias”2 da cidade – o muro da fronteira, os pontos de travessia, os nós de intercâmbio – que orientam a expansão de Juárez em resposta aos estímulos fronteiriços. Como notaram os geógrafos culturais Daniel Arreola e James Curtis, no seu estudo sobre a arqueologia urbana e as construções em zonas de fronteira, “a discrepância mais evidente entre estas cidades e outras da América Latina é que as suas formas são truncadas abruptamente ao longo das suas delimitações a norte pela fronteira internacional”3. O centro tradicional, a praça central, foi deslocado por avenidas turísticas e auto-estradas que conduzem aos postos fronteiriços. A fronteira entre os dois países é a rampa de crescimento de Ciudad Juárez, bem como o seu eixo organizacional.
     Para além deste limite urbano básico, a arquitectura e o planeamento em Juárez têm estado intimamente ligados aos padrões de migração. As oportunidades do outro lado da fronteira foram o factor de atracção mais forte para trabalhadores das províncias pobres do centro e do sul do México, que chegavam a Ciudad Juárez com esperanças elevadas de passar a fronteira; este simples facto foi, na realidade, o que marcou o ritmo dos maiores dinamismos urbanos e lhes deu forma. A arquitectura da migração em Juárez é mais que o muro da fronteira: paira algures entre as subdivisões privadas e as barracas artesanais, as monumentais glorietas (rotundas) e as lojas de curiosidades, os centros comerciais e os edifícios governamentais modernistas esquecidos, as maquiladoras e os clubes de narcotráfico. É uma arquitectura que se estende pela paisagem construída, obviamente, mas também pelos projectos esquecidos, negociações por baixo da mesa e agendas secretas. Para compreender totalmente Juárez enquanto fenómeno urbano, bem como o impacto da migração na expansão da cidade, temos de vasculhar fundo nos recônditos mais sombrios da sua história, os elementos aparentemente aleatórios e genéricos que constituem a sua estrutura e carácter urbano.

EDIFÍCIOS SUJOS

No início do século xx, Ciudad Juárez tinha cerca de dez mil habitantes, mas na década de 1930 a população cresceu para mais de 40 mil. Pouco tempo após a entrada em vigor da Lei Seca nos Estados Unidos, em 1921, Juárez e outras cidades mexicanas da fronteira transformaram-se em terras prometidas do álcool para barões de casinos, donos de bordéis, contrabandistas e todo o tipo de empreendedores pitorescos – bem como para as pessoas que ocupavam os lugares menos radiosos que a economia do vício tinha para oferecer: criadas, paquetes, cozinheiros, trabalhadores das fábricas de engarrafamento. A arquitectura da cidade também se diversificou.
     Os templos dos negócios sujos (casinos, casas de apostas, destilarias, cantinas e bares, clubes nocturnos, cabarés, bordéis, etc.) trouxeram alguma sofisticação à velha cidade poeirenta. Os edifícios, com nomes que evocavam um luxo mítico – o Savoy, o Monte Carlo, o Tivoli –, eram coroados com cúpulas mouriscas, torres sineiras de estilo colonial espanhol e moinhos de vento vermelhos. Estas construções abriram caminho a infra-estruturas complementares e a diversos edifícios de serviços (hotéis, arenas desportivas, praças de touros, restaurantes, armazéns, pequenas fábricas, lojas de curiosidades, vias pavimentadas e serviços públicos), criando um boom precoce de construção em Juárez, que dava ênfase ao crescimento económico e demográfico instável que a cidade atravessava nessa época. Uma estrutura (ou, pelo menos, uma fachada) urbana peculiar ergueu-se numa paisagem de ruas, em tudo o mais insípida e árida.4
     Este urbanismo precoce de parque de diversões para adultos estabeleceu uma das marcas fundamentais da arquitectura em Ciudad Juárez: rapidez de construção e ainda maior rapidez de desmontagem ou demolição, uma cultura de construção para usar e deitar fora que reflectia as movimentações de uma população flutuante e os ciclos de prosperidade e bancarrota do capitalismo primitivo. (A lógica de expansão de Juárez nessa época não era diferente da de Las Vegas, com os factores adicionais da economia binacional e das flutuações políticas.) Uma outra característica adquirida nesses anos foi a mercantilização arquitectónica da “mexicanidade”, apresentando a tradição sob a forma de execuções de mau gosto e representações comerciais grosseiras materializadas em falsas fachadas coloniais (ou de “estilo californiano”, como era conhecido no México), esculturas “astecas” em fibra de vidro e sombreros. A maioria dos habitantes de Juárez era recém-chegada, e a cidade adoptou rápida e alegremente estas raízes forjadas, em troca de dólares. A economia turística de Juárez transformou a paisagem sem valor deste apêndice do entretenimento do sudoeste americano numa forma de património arquitectónico e político. Poucos destes edifícios sobreviveram à Grande Depressão e ao reformismo do nacionalismo mexicano da década de 1930, mas as fórmulas arquitectónicas e de planeamento do período permaneceram, e voltariam a florescer num futuro não muito distante.

CARTOLÂNDIA
Quando os Estados Unidos se afundaram na Grande Depressão, milhares de trabalhadores mexicanos foram deportados. Em vez de regressarem aos seus lugares de origem, a maioria destes migrantes deixou-se ficar por Ciudad Juárez, esperando arranjar uma forma de regressar aos Estados Unidos. Centenas de barracas temporárias e dúzias de pensões baratas surgiram em redor da cidade para abrigar aqueles que esperavam voltar aos seus empregos na construção de vias-férreas ou na apanha de algodão e fruta nos campos do Sudoeste americano. Entre 1910 e 1930, o número de Mexicanos a residirem nos Estados Unidos aumentou de 200 mil para mais de 600 mil – isto contando apenas os emigrantes legalizados e registados.5 El Passo, no Texas, a cidade “gémea” de Ciudad Juárez no lado americano da fronteira, transformou-se na “Ilha Ellis dos mexicanos”.
     Quando a perspectiva de entrar na Segunda Guerra Mundial e o correspondente medo da escassez de trabalhadores começou a pairar sobre os Estados Unidos, foram assinados, em 1942, os primeiros acordos com o México para permitir a migração diária de trabalhadores. O Programa Bracero (bracero vem de brazo, a palavra espanhola para braço) empregou mais de quatro milhões de trabalhadores temporários (até o governo dos Estados Unidos ter decidido cancelá-lo unilateralmente, em 1964), fazendo de Juárez o principal destino para os que pretendiam emigrar: em 1950, a cidade crescera para perto de 140 mil habitantes, e em 1960 a população aumentara já para 260 mil, transformando-a na maior cidade da fronteira mexicana.6
     O fim do Programa Bracero acentuou os problemas urbanos de Juárez: mais de dois milhões de trabalhadores temporários regressaram ao México, agravando a falta de habitações, serviços e emprego. Em termos de construção, este êxodo em sentido inverso deixou uma marca brutal na paisagem: os bairros de lata estendidos pelo deserto, sarcasticamente chamados cartolandias (“terras de cartão”), com uma distinta ressonância Disney. Este panorama sombrio de milhares de barracas espalhadas pelas dunas do deserto, construídas com restos de sucata, pedaços de madeira, cartão e outros materiais recolhidos dos refugos de fábricas locais e de lixeiras, marcou o início de uma nova era de conflito urbano, distorcendo a ilusão de “viver na cidade” e as supostas virtudes e valores da urbanidade.
     Apesar de a emigração legal do México para os Estados Unidos ter cessado abruptamente após 1964, Juárez continuou a ser uma das principais portas de entrada nos EUA da imigração ilegal até ao início da década de 1990. Na realidade, a imigração ilegal florescia já durante os anos do Programa Bracero. Num dos primeiros esforços de deportação em larga escala do género, a “Operação Wetback” (wetbacks, ou mojados, são termos depreciativos para os imigrantes ilegais, forçados a atravessar a nado o Rio Grande para entrar nos Estados Unidos) devolveu mais de um milhão de trabalhadores sem documentação ao México, em 1954.7 Por essa altura, Juárez já incorporara o tráfico humano nos serviços da estrutura económica local. Os enganchadores (angariadores) eram contratados em quintas americanas e percorriam a cidade em busca de homens jovens e fortes dispostos a trabalhar ilegalmente e a arriscar as suas vidas para o fazerem; os coyotes começaram a cobrar quantias avultadas para conduzir as pessoas para o outro lado da fronteira, através do deserto. A arquitectura da cidade mostrou a mesma capacidade de adaptação: estradas improvisadas e hotéis rudimentares para migrantes, túneis clandestinos sob a linha da fronteira, clubes nocturnos pequenos e imundos para matar as saudades de casa antes da aventura através do deserto.
     Quanto mais a cidade crescia, mais difícil se tornava para a maioria dos seus novos habitantes ter acesso a água, electricidade ou saneamento; para nem falar de estradas asfaltadas, escolas, habitações dignas ou espaços de recreação. E no entanto, a promessa de Juárez como um prelúdio para uma vida melhor continuava a atrair gentes de todo o México. A arquitectura de Juárez a meio do século xx era já sintomática da terrível confusão em que a cidade estava enredada, mas servia também, cada vez mais, para proporcionar encobrimentos e mesmo para aproveitar a precariedade e os problemas que os recém-chegados enfrentavam. Mais que a porta de entrada para a boa vida, Ciudad Juárez estava a tornar-se uma armadilha para ratos, o pau mexicano para a cenoura do sonho americano.

CENTROS COMERCIAIS E MONUMENTOS

Nos primeiros anos da década de 1960, imediatamente antes de a cidade se ter afundado numa crise urbana declarada com o regresso dos braceros, o crescimento de Ciudad Juárez tornou-se objecto de preocupação nacional. O governo federal foi forçado a dar resposta às antigas queixas por abandono e negligência, quando começou a promover a reabilitação das cidades fronteiriças mexicanas, esforço esse encabeçado por Ciudad Juárez. Esta foi uma época de grandes desafios para o governo mexicano, com o fim dos anos milagrosos do Desarrollismo (desenvolvimento), o crescimento do mal-estar social e a perspectiva de ter os olhos do mundo postos no país após a vitória da candidatura à organização dos Jogos Olímpicos. O México tinha de provar ser uma nação moderna, em especial através das suas cidades fronteiriças, já que eram as portas de entrada no país.
     Em Juárez, a resposta às solicitações do governo veio de Antonio J. Bermúdez, um notável homem de negócios local, antigo presidente da Câmara, que também dirigira o monopólio nacional de petróleo mexicano, o Pemex. Bermúdez possuía a mistura perfeita do conhecimento e prestígio fronterizo, combinado com laços estreitos com as elites governamentais da Cidade do México e uma formação adequada no seio das altas esferas do Partido da Revolução Institucionalizada, ou PRI, que, sozinho, governou o México durante 70 anos. A sua resposta aos dilemas de Juárez foi também uma conveniente amálgama. Há décadas que Bermúdez promovia a reabilitação das cidades fronteiriças, e por fim a sua visão ganhou forma com o Programa Nacional Fronteiriço (Pronaf), de 1961, um programa de transformação urbana que prometia fazer com que Juárez e outras cidades fronteiriças deixassem de ser “Sin Cities” e se transformassem em “Pleasantvilles”, com uma pitada de orgulho mexicano e arquitectura moderna acrescentados à mistura.
     O Pronaf pretendia ser um esforço combinado de embelezamento e industrialização para “salvar” as cidades fronteiriças mexicanas dos males da dependência histórica em relação às suas congéneres norte-americanas e oferecer oportunidades de trabalho aos recém-chegados a Juárez, poupando-os à necessidade de ter de atravessar a fronteira para os Estados Unidos. O programa delineava um conjunto de problemas “inatos” de Juárez, tais como os desequilíbrios comerciais que forçavam os consumidores locais a fazer compras em El Paso, e a má reputação trazida pelo “turismo do vício” que florescera durante a Lei Seca e a Segunda Guerra Mundial. Juárez já não podia depender da agricultura, criação de gado, extracção mineira ou da modesta economia de serviços locais para fazer face às novas exigências urbanas, e seria lançada uma fórmula de turismo, manufactura e retalho de qualidade para preencher essa necessidade urgente.
     O Pronaf foi um dos primeiros empreendimentos abrangentes de planeamento moderno do país, e provavelmente o primeiro a considerar que o melhoramento equivalia a um embelezamento, concentrando-se na aparência física das cidades. O programa dividia-se em duas fases: inicialmente, centrar-se-ia na aquisição de terrenos, renovação dos postos fronteiriços, construção de novos edifícios culturais e turísticos de referência, criação de incentivos para o investimento privado e promoção das cidades através de uma série de campanhas publicitárias urbanas. A longo prazo, o Pronaf propunha-se construir centros comerciais (os primeiros do país) e parques industriais ao estilo americano, que seriam administrados pelo governo. Para construir as “Portas para o México” (era este o nome pomposo dos novos portais do Pronaf, que incluíam postos fronteiriços e alfandegários, bem como instalações para negócios, venda a retalho e fins culturais), Bermúdez recorreu a Mario Pani, arquitecto querido do regime do PRI (foi sua a mão por trás de projectos da dimensão e importância da Cidade Universitária e do complexo habitacional de Tlatelolco, na Cidade do México), um dos mais notáveis, prolíficos e controversos arquitectos mexicanos do século xx.8
     Os esboços iniciais que Pani concebeu para o Pronaf estavam carregados do “optimismo agressivo” que caracterizou o Movimento Moderno americano de meados do século.9 Parecem storyboards para um filme de ficção científica de baixo orçamento: arranha-céus ultra-elegantes e arcadas de betão, anfiteatros em forma de concha, cortinas de vidro, blocos simples à Mies van der Rohe, escadarias suspensas; complexos de escritórios e zonas de recreação dignas dos projectos de Victor Gruen no Texas ou na Califórnia; uma arquitectura que seria de esperar ver no pavilhão Futurama da Feira de Nova Iorque de 1964, mas nunca numa cidade da fronteira mexicana. A arquitectura do Pronaf optou por uma aparência de Estilo Internacional, puro e neutro; um contentor transparente para os objectos ou ambiências “autênticos” seleccionados para serem exibidos como reflexos do novo e moderno México. Era uma arquitectura monumental mas também convidativa, uma afirmação assaz politicamente correcta e contidamente patriótica. Mais que a procura de uma Arquitectura Moderna mexicana, o Pronaf estava ansioso por atingir uma “aparência mexicana”.10
     O Pronaf apontava para um corte programático na arquitectura moderna mexicana: os arquitectos e urbanistas, apoiados pelo Estado, estavam a abandonar os compromissos sociais basilares das décadas anteriores – quando construir escolas, hospitais e habitação social eram prioridades absolutas – para abraçar o potencial da regeneração urbana, projectos de zonas comerciais e infra-estruturas turísticas. Só restavam os gestos rituais e as intenções políticas dos projectos: o modernismo mexicano reduzido a centros comerciais e a monumentos. Na verdade, o Pronaf reflectia as estratégias arquitectónicas da economia do vício que a tão viva voz desprezava, utilizando uma versão “mais limpa”, actualizada, do exotismo popular mexicano, uma versão suficientemente sadia para poder ser apreciada por toda a família. Ao mesmo tempo, queria afastar os olhares das partes feias da cidade: as cartolandias e os bordéis e tudo o que pudesse sugerir o passado. Era um enorme e vistoso ardil para esconder os conflitos sociais de uma cidade à beira do desastre.
     Apenas cinco anos após ter sido lançado, o Pronaf revelou-se um fiasco. Inúmeros problemas – a falta de meios financeiros, as eleições presidenciais e a concentração das atenções na capital para os Jogos Olímpicos – paralisaram o programa. Desagradado, Bermúdez demitiu-se em 1965, pondo fim às grandes ambições do programa. Em Juárez, foi construída uma versão menor do Pronaf: um Centro de Convenções projectado por Pani, o Museu de Arte e História, de Pedro Ramírez-Vázquez (que por essa altura projectou o Museu Nacional de Antropologia, um edifício que pode ser considerado o pináculo da arquitectura de regime no México), algumas estátuas, um hotel, e um complexo comercial com um supermercado, um centro de artesanato e um punhado de pequenas e tristes lojas de recordações.
     Num sentido restrito, o Pronaf foi um fracasso. Mas a verdade é que o principal legado do programa não está no que foi construído mas na sua lógica simbólica. O Pronaf marcaria permanentemente Ciudad Juárez. (Eu arriscaria mesmo dizer que se tratou da iniciativa urbana mais significativa na cidade até esta data.) Abriu caminho às iniciativas imobiliárias público-privadas e ao ufanismo contemporâneo, e desviou a preocupação das autoridades e dos urbanistas dos problemas da cidade para o problema da imagem da cidade. Pôs fim ao proteccionismo tradicional – os projectos governamentais de substituição das importações e de desenvolvimento praticados no resto do país –, abrindo caminho a uma nova era de expansão urbana caracterizada pela prevalência dos interesses privados, pela especulação imobiliária e pela exploração social. Na realidade, o Pronaf continha já a semente daquilo que viria a tornar-se a marca da Juárez contemporânea: a indústria maquiladora.

MODERNIDADE MAQUILADORA

No mesmo ano em que Antonio Bermúdez se demitiu da direcção do Pronaf, as taxas de desemprego em Ciudad Juárez estavam a crescer entre 50 a 70 por cento devido à repatriação dos trabalhadores braceros. O governo apresentou rapidamente um plano de emergência que empreendeu a tarefa de construir fábricas ao longo da fronteira onde o Pronaf fora interrompido, com uma importante diferença: o Programa de Industrialização Fronteiriça (PIF) abandonou o conceito de uma indústria governamental que abastecia os mercados locais e optou por parques industriais privados de fábricas destinadas ao mercado dos Estados Unidos.
     As maquiladoras são fábricas de produtos destinados à exportação, a maioria das quais pertencendo a estrangeiros, que aproveitam a mão-de-obra barata para reduzir os custos de produção, e que se podem encontrar em praticamente todas as cidades da fronteira do México com os Estados Unidos. O primeiro parque industrial de maquiladoras do país foi estabelecido em Ciudad Juárez, em 1967, nos lotes que o Pronaf urbanizara alguns anos antes. Mas as coincidências não param aí: o cérebro por trás de todo o programa das maquiladoras era Jaime Bermúdez, sobrinho de Antonio Bermúdez, mais tarde também ele presidente da Câmara de Juárez, e que fora contratado pelo tio como consultor do Pronaf, onde estabeleceu numerosos contactos com investidores locais e americanos, chegando mesmo a desenvolver estudos de viabilidade para a instalação de parques industriais para exportação de produtos processados, como estratégia “complementar” ao Pronaf, centrado no mercado nacional.
    Nas décadas de 1970 e 80, o México entrou num círculo de recessões crónicas e instabilidade financeira recorrente. Não constitui qualquer surpresa que, nesses anos, a emigração ilegal para os Estados Unidos tenha atingido níveis sem precedentes. Ainda assim, os controlos fronteiriços nas principais áreas urbanas como El Paso/Juárez foram fortemente apertados, e tornou-se mais difícil atravessar a fronteira. Muitos alcançavam-na, mas não tinham meios para passar para o outro lado; alguns tinham de deixar a mulher e filhas para trás. E contudo as pessoas continuavam a acorrer em grande número a Juárez, fornecendo às maquiladoras as suas hostes de trabalhadores sem formação, informação ou protecção. A taxa de crescimento anual da indústria foi de 18 por cento entre 1970 e 1980. Da dúzia de fábricas criadas no final da década de 1960, em 1980 as maquiladoras em Juárez eram já 121 e tinham-se tornado o principal empregador da cidade. Em 1985, perto de 80 mil pessoas trabalhavam na maquila, e a meio da década de 1990, o seu número ultrapassava os 150 mil.
     No início, as maquiladoras foram anunciadas e enaltecidas como símbolo de dinamismo e modernidade por proporcionarem os tão necessários empregos urbanos. Para além do mais, em Ciudad Juárez elas demonstravam que Jaime Bermúdez aprendera bem com o seu tio a importância e eficácia do embelezamento enquanto factor de distracção:

O Grupo Bermúdez constrói ele próprio as fábricas, recorrendo quase sempre a fachadas kitch – pseudo-gregas ou em estilo hacienda, com azulejos e ornamentações em ferro – que passaram a caracterizar [as] novas fábricas da fronteira... grandes, limpas, bem iluminadas... [com uma] aparência imaculada... quase sempre com jardins bem tratados, com filas de árvores a adornar as alamedas e amplos relvados em redor das unidades fabris...11

Nem uma sugestão sobre o facto de estas fábricas estarem estrategicamente situadas perto dos bairros de lata, ou sobre os riscos ambientais que muitas delas provocam, ou as restrições a que as associações de trabalhadores estão sujeitas, ou sobre os riscos que as deslocações entre a casa e o emprego representam para as trabalhadoras, que são a maioria da força laboral.

PAISAGEM DE TERROR

Na década de 1990, Ciudad Juárez transformou-se num ciclone mais assustador que o de um filme de ficção: os corpos de centenas de mulheres assassinadas apareceram espalhados pelos arrabaldes áridos da cidade, descobriram-se depósitos ilegais de matérias radioactivas e as mortes fortuitas na sequência de tiroteios em clubes de narcotráfico bem como a violência relacionada com a droga em plena luz do dia tornaram-se ocorrências do quotidiano. Hoje, Ciudad Juárez é uma cidade com perto de 1,5 milhões de habitantes, que continua a ser consumida pela corrupção desenfreada, por um planeamento ineficaz, pela degradação ambiental e por fracturas sociais.
     As autoridades locais e os urbanistas têm procurado suavizar a imagem da cidade (uma tarefa considerável, dado o facto de Juárez ter sido declarada a cidade mais violenta do México, e de no ano passado a terem considerado “mais perigosa que Bagdade”). Há dois anos, a Secretaria de Desenvolvimento Comercial e Turístico de Juárez lançou uma “Rede de Apresentações de Juárez”, uma tournée de conferências e eventos para apresentar “o melhor da cidade” de modo a atrair os turistas, realçando os “valores” e as “atracções culturais” de Juárez. Esta obsessão com a imagem da cidade tornou-se evidente em todo o tipo de iniciativas urbanas, das absurdas apreensões de videojogos proibidos, que não mostram os “verdadeiros valores” da cidade, à grave e cínica descredibilização e culpabilização das famílias das mulheres assassinadas e de várias organizações sociais por “promoverem uma visão degradante” da cidade. O que é mais perturbador e revelador, contudo, é o facto de toda esta obsessão das políticas urbanas locais pelo aspecto visual possuir raízes profundas, de ter estado no centro do planeamento em Juárez durante décadas, e de ter fornecido uma cobertura para muitas das agendas ocultas de membros corruptos das autoridades locais e de criminosos de colarinho branco.
     Em 1986, Jaime Bermúdez foi eleito presidente da Câmara de Juárez.
     Por essa ocasião, já tinham sido transferidos para as mãos de privados 1238 hectares de propriedade pública, que anteriormente pertenciam ao Pronaf, a maioria dos quais através de transacções sem registos ou duvidosas. A Zona Pronaf estava também envolta em confusas disputas de propriedade. No início da década de 1990, um novo conjunto de inquilinos endinheirados começou a ocupar a área, que passou a ser conhecida como a “zona de guerra” porque a renovada avenida, com bares, restaurantes e clubes, era também um crónico local de crimes, palco predilecto para rixas entre cartéis de droga e execuções em pleno dia. Bermúdez continuou a construir parques industriais noutras partes de Chihuahua, e fez uso da sua influência para ocupar e privatizar terras comunais nos arredores da cidade. A sua “Nova Juárez” revelou-se desastrosa em zonas como Lote Bravo ou Rancho Anpra, onde Bermúdez promoveu ocupações informais de propriedades privadas na esperança de as explorar futuramente, mas acabando por as transformar em bairros de lata. Curiosamente, estes dois locais foram as principais zonas da cidade onde se encontraram muitos dos cadáveres de mulheres assassinadas, las muertas de Juárez.
        Ao falar da degradação geral que tem vindo a caracterizar a vida em Ciudad Juárez nas últimas décadas, as explicações mais comuns tendem a cair nas noções de acidente urbano, informalidade ou no “falhanço” de políticas. Contudo, entre os despojos da história urbana de Juárez, há evidências alarmantes da existência de uma implementação firme e opaca de políticas. Mais que um lugar sem raízes, Juárez é uma cidade desarreigada. A dureza do meio não é tanto um efeito colateral como uma resposta directa à precariedade e vulnerabilidade da maioria da sua população pobre e deslocada. Uma cidade de selvajaria capitalista, onde as vidas humanas são lançadas na enxurrada dos bens para consumir e deitar fora: Levis baratas, televisores reles, peças de automóvel com curto prazo de validade, adolescentes de longos cabelos negros deixadas nuas e estranguladas a decomporem-se sob o sol ardente do deserto. Ciudad Juárez é uma cilada urbana, construída com o engodo da possibilidade de uma vida melhor e a imagem falsa de uma cidade progressista, olhando para Norte com sonhos de liberdade e prosperidade. Sonhos desarreigados, esmagados, enterrados ou abandonados à podridão e ao esquecimento. Juárez não é produto de um acidente ou acaso ou falta de controlo: é uma armadilha; um inferno na terra, por desígnio.|

tradução (do inglês) de João Carvalhais

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1 Alma Guillermoprieto. A Hundred Women. The New Yorker. [Em linha] (29 de Sep. 2003). Disponível em http://www.newyorker.com/archive/2003/09/29/030929fa_fact_guillermoprieto.

2 Liliana López; Eloy Méndez; Isabel Rodríguez. Juxtaposition between walls and urbanism in globalized cities: challenges of the mexican border City Model. in international planning history conference: planning models and the culture of cities, 11, Barcelona, 14 to 17 July 2004. Actas. [Em linha]. Disponível em http://www.etsav.upc.es/personals/iphs2004/pdf/120_p.pd.

3 Daniel Arreola; James Curtis. The mexican border cities: landscape anatomy and place personality. Tucson : University of Arizona Press, 1993, p. 69.

4 Cf. Oscar J. Martínez. Border boom town: Ciudad Juárez since 1848. Austin : University of Texas Press, 1978.

5 Jorge Durand. From traitors to heroes: 100 years of mexican migration policies. Migration Information Source. [Em linha] [Online]. (Mar. 2004). Disponível em http://www.migrationinformation.org/results.cfm

6 Eloy Méndez Saínz. Arquitectura nacionalista: el proyecto de la Revolución Mexicana en el noroeste (1915-1962). México : Universidade de Sonora, El Colegio de Sonora/Universidade Autónoma de Sinaloa, Plaza y Valdés, 2004, p. 92.

7 Cf. Richard Craig. The Bracero Story. Austin : University of Texas Press, 1970.

8 Cf. Miquel Adrià. Mário Pani: la construcción de la modernidad. México : GG, 2005.

9 Termo cunhado por Beatriz Colomina. Domesticity at War. Barcelona : Actar, 2007.

10 Mexican look, no original. Termo usado para qualificar o Pronaf num artigo do New York Times, de 1 de Março de 1964.

11 Augusta Dwyer. On the line: life on the Us-Mexican border. London : Latin American Bureau, 1994, p. 19.


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VER ensaio 2 #236
VER ensaio 2 #237
VER ensaio 2 #240
VER ensaio 2 #242
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